segunda-feira, 16 de março de 2009

Gloriosa

Gloriosa

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Escrito por CARLOS CESAR PEFF NOVAES
18-Feb-2009

Marília Pêra está lotando o teatro Fashion Mall, no Rio de Janeiro, com a encenação da vida de Florence Jenkins, a excêntrica cantora norte-americana do século passado.

Florence Jenkins teve uma infância marcada pelo sofrimento, enfrentou graves crises conjugais, submeteu-se a um severo tratamento – no qual perdeu os cabelos – para ser curada da sífilis transmitida pelo marido, suportou várias situações de solidão e abandono, contabilizou mais perdas do que ganhos e, aos 50 anos, resolveu dedicar-se ao canto lírico para, de alguma forma, compensar através da realização musical todas as mazelas de uma desafortunada trajetória.

Teria conseguido, não fosse um pequeno detalhe: Florence não alcançava a maioria das notas entoadas. A desafinação era inevitável.

Em depoimento à imprensa carioca, a atriz Marília Pêra contou que, na preparação de Gloriosa (peça de Peter Quilter, com direção de Charles Möeller), precisou aprender a cantar muitas árias para, depois, ensaiar as partes em que iria desafinar.

Na opinião de Marília, um dos momentos mais comoventes da peça é quando Florence começa a desconfiar que desafina e se vê obrigada a encarar, de novo, o desmoronamento dos seus sonhos.

A verdadeira Florence sempre lotava as casas em que se apresentava. Chegou a ter Cole Porter e Irving Berlin no auditório. Dizia-se, entretanto, que as plateias costumavam reunir mais curiosos do que admiradores. Outros explicavam o fenômeno dando crédito ao espírito de compaixão das pessoas: afinal, tratava-se de uma sofrida e corajosa senhora tentando encontrar, já na última fase da vida, um sentido para a sua existência.

Aos 76 anos, Florence Jenkins ousou cantar no Carnegie Hall, em Nova York. A crítica, implacável, bombardeou a apresentação. Não deixou pedra sobre pedra. Um mês depois, a cantora morreu de infarto.

Fico me perguntando, às vezes, quanto tempo alguém pode viver enganado a respeito de si mesmo, com a cumplicidade omissa ou compassiva dos que estão ao seu redor? Em quantas canções desafinamos repetidamente e, iludidos com falsos elogios e aplausos aduladores, prosseguimos convencidos de que somos o máximo? Quantas avenidas e ruas atravessamos na vida, acreditando que admiram nossas roupas imaginárias, até que algum menino desavisado grite do meio da multidão que o rei está nu?

Por outro lado também me pego a indagar como os seres humanos são capazes de aturar a desafinação de notas e notas seguidas, com que resignação suportam falsos cantores entoando canções enganosas em tantos e diversificados setores da sociedade – na política, na religião, nas artes, na ciência –, e ainda que insondáveis motivos têm para, ao final, celebrar a fraude, a incompetência, o absurdo, a insensatez?

CARLOS CESAR PEFF NOVAES

Pastor da IB de Barão da Taquara, Rio de Janeiro (RJ)

carlosnovaes.blogspot.com


EXTRAÍDO DE: www.ojornalbatista.com.br

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