quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Cada teologia tem a sociedade que merece.



Reflexão — Bráulia Ribeiro

O cristão precisa situar-se no mundo em que vive.

Jesus orou para que, estando no mundo, ficássemos livres do mal, mas parece que insistimos em sair do mundo e continuar com o mal. Afastamo-nos das formas culturais como se fossem malignas por si mesmas, mas permitimos que valores errados nos influenciem, desde que tomem formas religiosas. Afastamo-nos também das indagações do mundo. Como disse alguém: dizemos que Cristo é a resposta, mas para qual pergunta? Já não conhecemos as perguntas que o mundo nos faz.

Vamos investigar uma idéia que é constante no cinema atual: carma ou escolha. Existe o livre-arbítrio ou seguimos um destino pré-determinado? Vários filmes recentes tratam do assunto. Talvez seja um sinal de que esta nossa megacultura ocidental está descobrindo suas fraquezas, precisando se reinventar, e busca subsídios teológicos para isso.

Um desses filmes, o mais poderoso em formar pensamentos, é “Matrix” (1 e 2). O primeiro virou “cult”, filme cheio de inovações gráficas e de pseudo-enigmas; digo pseudo porque o segundo filme responde a todos eles e revela o balaio de gato sem fim que é o mundo de “Matrix”. Se o primeiro deixou dúvidas quanto à filosofia dos autores, o segundo traz tudo às claras. Quando Neo (Keanu Reaves) finalmente encontra o “Arquiteto” (que, na cabeça dos diretores delirantes, deve ser uma mistura de Deus como foi retratado por Michelangelo na capela Sistina, e de Bill Gates), este discursa longamente sobre o livre-arbítrio. Propõe que o grande problema do messias é o livre-arbítrio. Ele tem capacidade de escolha, e a usa mal, o que o coloca num círculo infinito de novas tentativas, forçado a repetir o mesmo destino cármico de fracasso, deixado pelo que veio antes dele... Sei lá se entendi mesmo essa bagunça hinduísta-exotérica-digital, que é o retrato perfeito do pós-modernismo. Mas esse vale-tudo filosófico traz à cabeça da geração atual uma importante pergunta: podemos escolher nosso destino? Ou temos apenas uma falsa sensação de liberdade, criada pelo arquiteto sádico desta matrix em que vivemos?

A história de “Minority Report”, de Spielberg, é mais simples. Num futuro não muito distante decide-se testar um programa para evitar assassinatos. O programa é parte da polícia local, chamada Divisão Pré-crimes, que se baseia em informações transmitidas por três videntes, chamados Precogs. Os videntes são capazes de ver os crimes antes de acontecerem. A polícia corre ao local e evita o crime, prendendo o pré-criminoso, que é tratado como um criminoso de fato, apesar de não ter cometido nenhum homicídio.

A história esquenta quando os videntes têm uma premonição de um crime que o próprio chefe da polícia John Anderton (Tom Cruise) cometeria. As imagens dele matando um homem que ele nem mesmo conhecia aparecem na tela das premonições. O feitiço se volta contra o feiticeiro. O chefe dedicado se vê vítima do sistema no qual confiava plenamente. De acordo com este sistema, um pré-criminoso é um criminoso real, porque o futuro visto pelos videntes é tratado como uma realidade inexorável.

Alguns teólogos já disseram que se o futuro é conhecido (seja por Precogs ou por Deus), o livre-arbítrio não existe de fato. Tudo obedece a um desenho previamente feito — uma vontade soberana que engole todas as outras vontadezinhas em seu grande útero.

Essa “teologia” gera a sociedade do pré-crime. A predeterminação torna essa utopia possível, até desejável. Basta que conheçamos o destino programado para cada um e nos encarreguemos de protegê-lo desse destino, prendendo pré-assassinos, eliminando intra-uterinamente alguns indivíduos cujo mal inerente o justifique. Se os Precogs conseguissem prever um novo Hitller ou um novo Saddam, sua eliminação seria automática.

Esse futuro pode estar mais perto do que imaginamos. A genética moderna sofre da mesma síndrome dos Precogs. Alguns cientistas afirmam que existem genes responsáveis por comportamentos morais. No futuro, um exame de sangue poderá nos dar as dicas que precisamos, poderá desenhar o perfil do indivíduo — se assassino, estuprador ou franco-atirador. Será um mundo limpo. Um hemograma, um perfil genético, e a sociedade do pré-crime se arma de razões para processar, prender e até eliminar seres humanos.

Essa utopia é um produto direto de nossa teologia cristã. Somos o que cremos. Nossas crenças são a base de tudo o que construímos. A teologia da predeterminação está no coração da cultura ocidental, desde Philo e Agostinho. Também está no coração das sociedades islâmicas fundamentalistas, absolutas e totalitárias: “Maktub” — está escrito. Será Deus o mesmo Alá?

Mas, e se fosse diferente? Se, em vez de teologarmos e filosofarmos, acreditássemos puramente na Bíblia? Ela diz que Deus se arrependeu de ter feito o homem (Gn 6.6). Ao descobrir que o ser livre que havia criado escolheu negar-lhe amor e ainda afrontá-lo com uma impiedade além de todos os limites, Ele sofreu. Sofreu tanto quanto um homem que, tendo tirado uma mulher da mais suja lama moral, drogada, suja, prostituída, se casa com ela, tem filhos, constitui uma família. Um dia este homem chega em casa e não vê sua esposa. Ela voltou para as ruas. Preferiu a lama, as drogas, o sofrimento degradante. O marido sofre agora, não por si mesmo, mas pelo destino que sua amada escolheu e que a fará sofrer. Essa é a metáfora proposta por Deus para falar de seu amor pelo povo de Israel, no livro de Oséias. Alguns teólogos que me desculpem, mas esta não é a imagem de um Deus-Alá indiferente e soberano sobre a vontade humana.

Todas estas, além de inúmeras outras passagens literais e metafóricas da Bíblia, perdem o sentido se o futuro for causado, se o livre-arbítrio humano não for real, mas um artifício divino para nos dar apenas a impressão de liberdade. A Bíblia passa a ser um livro sobre a grande matrix ilusória de Deus, e não o livro destinado a nos descortinar a verdade sobre o amor de um Deus que espera para ser amado, que nos pede para escolher a bênção em vez da maldição.

Engraçado que, diferente dos idealizadores de “Matrix”, o judeu Steven Spielberg escolhe como final esta última versão da verdade sobre o ser humano. No final a sociedade do “Minority Report” redescobre que é livre. O chefe da polícia, quando encara face a face o seu próprio crime, é surpreendido pela voz da vidente que lhe diz: “Não! Você é livre para não matá-lo.” O próprio criador do sistema, Lamar (Max von Sydow), que por anos seguidos prendeu pré-criminosos, também se vê de frente com o seu próprio destino. A visão de seu pré-crime aparece na tela. Com uma arma na mão, encara Anderton, que lhe diz: “Se você me matar, vai para a cadeia, mas prova para todos que você está certo”.

No entanto, ele próprio se sabe livre e atira contra si mesmo, numa confissão desesperada de fracasso. A sociedade se liberta da arbitrariedade do pré-crime, antes consagrada como a solução de todos os males. Os pré-criminosos voltam às ruas e deixam de pagar pelo que poderiam ter feito, mas nunca fizeram. E todos respiram aliviados por se verem restaurados novamente à sua dignidade de seres humanos no comando de seu destino.

Ligados a uma rede de fios, mergulhados numa piscina azulada que lhes mantinha aquecidos, os Precogs eram uma visão grotesca no início do filme. O local onde ficavam chamava-se templo e não era visitado por ninguém. Eles não eram capazes de interagir. Sua única função era prever o futuro. Eram três, uma trindade divinizada (coincidência?) e seus policiais do pré-crime eram chamados de sacerdotes. No fim, invalidadas suas previsões, recobram sua humanidade e voltam a viver como qualquer outro ser humano, numa metáfora que me faz pensar em Salmos 78.41, Isaías 53, Lucas 23 e tantas outras passagens que nos mostram o Deus supremo limitando-se em seu próprio poder por nos ter feito livres e sujeitando-se à morte na cruz para assim, apesar de nossas escolhas erradas, poder nos redimir.

Se verdadeiro livre-arbítrio implica uma definição diferente para a onisciência divina não me importa. Se o livre-arbítrio respalda a idéia da meta-história, que se desenrola para Deus na eternidade e para os homens na terra, numa interação dinâmica e temporal da divindade com a humanidade, também não me importa. Se é armeniana ou calvinista esta idéia não me importa. Como os judeus, povo tribal sem pretensões filosóficas, não pretendo dissecar Deus e sua vontade como se disseca um defunto numa aula de anatomia. Para mim, a teologia verdadeira é aquela que me aproxima dele e de seu amor.

Spielberg tem razão em sua crítica às incoerências da teologia cristã. O Deus do Antigo Testamento não escolheu o caminho mais simples, o de eliminar a possibilidade do mal, criando um jardim perfeito de autômatos sem vontade. Conviver com a possibilidade do mal, permitindo-nos ser capazes de discernir e escolher entre o bem e o mal, foi um caminho mais arriscado, mas que tornou possível o amor. Que Deus nos permita continuar crendo nisso. Cada teologia tem a sociedade que merece. Uma proposta “teo-filosófica” diferente poderia mudar o futuro do mundo? Resta a nós, cristãos, decidirmos.


Bráulia Inês Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, onde leciona lingüística e missiologia na Escola de Treinamento Transcultural da JOCUM — Jovens Com Uma Missão.
braulia_ribeiro@yahoo.com



(Revista Ultimato)




EXTRAÍDO DE: www.ultimato.com.br

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