domingo, 24 de agosto de 2008

O frio já é outro.



Reflexão — Valdir Steuernagel

O frio já é outro

É bom estar de volta à nossa terra, depois de vários meses na Noruega. Afinal, o Brasil é o Brasil e é bom poder voltar. Reencontrar os filhos, a família e os amigos. Abraçar o pessoal do Centro de Pastoral e Missão, que é tão gente da gente. Participar de um culto em nossa língua, comer um churrasco, rir com os causos, vestir uma bermuda... É muito bom!

Nos dois artigos anteriores, intitulados “A voz que vem do frio”, procurei estabelecer uma relação entre o que eu percebia na igreja do lado de lá e a nossa igreja evangélica daqui. Com a presente reflexão eu encerro esta série.



A fé cristã entre o público e o privado

Uma das coisas que o crescimento da igreja evangélica brasileira está demonstrando é que é muito mais fácil procurar moldar a vida pessoal e familiar com base em valores evangélicos do que moldar a sociedade a partir desses mesmos valores. A tradição evangélica nos dá elementos e subsídios importantes para procurarmos viver a fé nas nossas relações pessoais e familiares. A pessoa que bebia muito e gastava o seu dinheiro com isso, ao conhecer o evangelho, deixa de beber e passa a administrar seus recursos de outra forma. As conseqüências da chegada do evangelho são visíveis: há mais dinheiro para comer e para investir na educação dos filhos, em roupa e na própria casa. Estabelecer um processo de mudança da sociedade, no entanto, é mais difícil e complexo, mas nem por isso menos necessário. Pois a fé cristã tem, definitivamente, uma dimensão pública.

Em vários lugares da Europa, entre os quais a Noruega, a sociedade (e, em parte, a própria igreja) tem feito uma espécie de caminho contrário. Tendo experimentado crescimento e influência no passado, hoje esse quadro se vai ruindo, sendo a fé cristã relegada a uma dimensão privada. Dentre os vários fatores que contribuem para isso deve-se destacar o processo de secularização e a sua conclusão de que o papel da igreja não é importante e Deus mesmo poderia ser dispensado.

Ao se relegar a fé para o universo privado, ela fica condenada a uma situação de irrelevância. Na vida privada, afinal, cada um faz o que quer e ninguém tem nada a ver com isso. Criou-se assim um abismo entre o público e o privado, do qual não se consegue nem se quer sair.

Olhando para essa experiência, só dá para exclamar: pobre Europa! Ela “escanteou” para o privado aquela fé cristã que poderia dar sentido para a vida das pessoas e para a própria sociedade. Agora ela já não tem significado nem sentido algum a transmitir para a nova geração, além de um humanismo falido. Não consegue conversar com os anseios de uma nova época que, chamada de pós-moderna, bebe dos frutos da modernidade, mas continua com sede. Não tem crença nem instrumental para lidar com uma crescente população muçulmana, que, com sua fé pública e política, chega a uma Europa moralmente falida e desagregada.

O desafio que provém dessa experiência é que não podemos nem privatizar a fé nem pensar que a sociedade é uma grande igreja. Precisamos pensar e criar mecanismos e processos públicos que sejam marcados pela fé, que construam sociedades sólidas, priorizem os relacionamentos humanos, busquem patamares de justiça, sejam ecologicamente saudáveis, cativem a nova geração e tenham saudade do reino de Deus.



A relação entre teologia e igreja

A igreja evangélica brasileira não é muito afeita ao estudo teológico. É uma igreja bastante intuitiva, prática e até mágica. “A teologia só atrapalha”, muitos dizem, não escondendo o nosso viés, nem a nossa superficialidade, nem o nosso engano. O fato é que todos temos a nossa teologia e a questão é apenas definir o seu conteúdo e a sua consistência.

Pouco a pouco a formação teológica vem conquistando seu lugar entre nós. Mas estamos fazendo isso com pouca criatividade, copiando muito do conteúdo e do processo teológico do Norte. E eu percebo que grande parte da teologia de lá se esqueceu de duas coisas das quais nunca poderia ter-se esquecido: a igreja e a sua missão. Lá a teologia buscou o ninho da universidade para nutrir sua existência e sua missão passou a ser o objetivo da própria universidade: academia e cientificismo. A teologia passou, assim, a responder a outro senhor e deixou de lado o seu enfoque maior, que é estar a serviço da igreja e da sua missão no mundo.

Não é muito difícil avaliar a teologia que se tornou cativa da universidade. O difícil é elaborar formas e modelos diferentes de fazer teologia. Mas o nosso desafio é nada mais nada menos do que isso.



Somos contadores de história

A Igreja, graças a Deus, pertence a Deus. Ele a chama à vida, sustenta-a e a purifica. O que nós podemos fazer é responder a Deus com fidelidade e contar aos outros e às novas gerações a história da sua fidelidade. É assim na Europa e é assim no Brasil. Somos e precisamos ser um povo contador de histórias.

Durante a nossa permanência na Noruega, havia um nome que sempre insistia em aparecer aqui e ali. Curioso, decidi buscar um livro que me contasse um pouco da história de Hans Nielsen Hauge. Descobri que ele foi um homem simples, teve uma vida breve (1771–1824), passou vários anos na prisão (1804–1814), mas se deixou chamar e enviar por Deus. Desafiou o “establishment” da época e tornou-se um pregador leigo itinerante. Por isso foi preso, mas a chama renovadora do evangelho já estava solta; a igreja e o país nunca mais seriam os mesmos. São histórias assim que precisam ser contadas e recontadas sempre, num exercício delineador das nossas prioridades e como um convite para que cada nova geração se deixe chamar e enviar por Deus. Essas histórias existem lá, assim como aqui. São histórias da fidelidade e do sustento renovador com que Deus agracia a Igreja, e pelas quais agradecemos. Precisamos ouvir sempre e novamente essas histórias, deixar-nos contagiar por elas e deixar-nos chamar por Deus para servi-lo em nossa geração com alegria, paixão e fidelidade.



Valdir Steuernagel é pastor luterano e professor no Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.


EXTRAÍDO DE: www.ultimato.com.br

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