sábado, 23 de agosto de 2008

Eu também quero menos deus.



Reflexão — Ricardo Gondim

Eu também quero menos deus

Diogo Mainardi vem se firmando como um fino polemista. Seu artigo pedindo menos deus na revista de maior circulação brasileira causou espécie; bateu recorde de cartas, algumas concordando e outras tantas indignadas. Mainardi declarou que havia uma superexposição ou vulgarização do divino no Brasil. Protestou contra líderes inescrupulosos que alardeiam títulos cada vez mais espetaculares, mas têm o nome manchado por não pagarem suas contas. Afirmou torcer contra jogadores de futebol que gravam em suas camisetas frases de efeito sobre a fidelidade de Deus com letras menores do que a propaganda da multinacional que os patrocina. Uma semana depois, Roberto Pompeu de Toledo, outro cronista do mesmo semanário, mencionou a influência do fundamentalismo evangélico de direita na política americana e mostrou a falta de sensibilidade cultural de algumas agências missionárias que desejam evangelizar os árabes. Toledo reforçou o pedido de Mainardi: “Menos deus, por favor!” Percebi, entretanto, que o Mainardi grafou deus sempre em minúsculo. Não sei se o fez para distinguir deuses do verdadeiro Deus, ou se ele considera que só existe essa divindade pequena, fruto da imaginação humana. Contudo, eu distingo um do outro. A Bíblia também diferencia os deuses; há aqueles que chama de ídolos e há o Altíssimo, o criador do universo — Deus em maiúsculo.

Antes de condenar os articulistas à fogueira, preciso deixar claro: também quero menos deus — mas com “d” minúsculo. Quero menos demiurgos! Convenhamos, há algumas expressões da divindade que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e análise crítica também consideraria desnecessárias.



Não quero um deus técnico,

Que, para satisfazê-lo, baste aprender uma técnica, recitar uma reza, aderir a um credo ou cumprir um ritual. Chega de manuais teológicos ou livros que nos ensinem os passos para agradar a Deus. Relacionamentos não dependem de técnicas. Muito do nosso pensamento ocidental vem do mundo grego, que entendia o universo numa relação de causa e efeito. Daí o fascínio teológico pelo cognitivo. Precisamos voltar a pensar Deus a partir da cosmovisão judaica, menos técnica e mais relacional. Jesus afirmou que a salvação vem dos judeus (Jo 4.21).

Por que a pós-modernidade ocidental rejeita a religião organizada? No Brasil, o segmento religioso que mais cresceu a partir do final da década de 90 foi o dos não religiosos. Paradoxalmente o misticismo e as práticas esotéricas fervilham exatamente entre esse grupo. Parece que as pessoas procuram práticas espirituais que não dependam de organização institucional, credos ou dogmas teológicos. Percebe-se que há um clamor pós-moderno pelo toque, pela experiência e pelo intuitivo. Quando o cristianismo ocidental voltar à teologia do afeto, ensinar às pessoas que elas podem experimentar a paternidade divina, poucas pessoas pedirão menos Deus. Ouvi uma história, cuja autenticidade desconheço, mas que serve para ilustrar essa carência pós-moderna: Um pastor viajava de avião pelo Oriente. Depois que se apresentou ao homem sentado ao seu lado, falou-lhe de seu trabalho. Antes de poder compartilhar a mensagem do evangelho, o homem questionou-lhe: “Pastor, em minhas viagens pelo Oriente, sempre que me sento ao lado de um monge, tenho a sensação de estar ao lado de um santo homem. Por que, ao me sentar ao lado de um pastor, tenho a sensação de estar perto de um homem de negócios?”



Não quero um deus oligarca,

Que crie elites poderosas em seu nome. Não quero um deus que gere pessoas soberbas; não quero uma religião em que as pessoas se enriquecem à custa da mensagem que pregam. Infelizmente o estigma que pesa sobre os religiosos é que Deus os fez cobiçosos, materialistas e cheios de ganância. As pessoas desdenham dos discursos piedosos com agendas duvidosas. O Millôr Fernandes assim se expressou: “Eu não dou dois centavos por um homem que lucra com os ideais que defende”. Precisamos mostrar que a vocação que vem de Deus capacita para o serviço, e não para a dominação; para o sacrifício, e não para o lucro. Os pastores são chamados para beberem o cálice que Jesus bebeu, tomarem a cruz sobre os ombros; tornarem-se criados de todos, principalmente dos pobres. A Igreja existe para servir, não para se autoproteger. Os cristãos vivem para se dar e não para se vangloriar. Quero um Deus que me inspire a afirmar como Paulo: “Estou pronto [...] para morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus” (At 21.13).



Não quero um deus minucioso e controlador

Desde os dias de Jesus Cristo, passando pela igreja primitiva e pelo ministério de Paulo, o legalismo tem sido o joio tão parecido com o trigo. (Entenda-se legalismo como um fascínio religioso que tenta controlar todos os pormenores da vida das pessoas.) Os fariseus desciam a minúcias ridículas procurando legislar o que era ou não um dízimo; quantos passos podia-se caminhar em um sábado. Depois, na Idade Média, os concílios se arrastavam tediosamente por décadas, discutindo temas irrelevantes: quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete, quanto se deve pagar para abater um dia no purgatório. As pessoas não entendem como os religiosos perdem tempo, debatendo temas insignificantes da vida: o tamanho do cabelo das mulheres, as gravatas e as togas dos pastores. Se as grandes questões como a justiça, a paz entre as nações, a sorte dos inocentes e a esperança dos perdidos não dominarem nossas prioridades, todos os outros debates serão irrelevantes. Diante de um mundo em que milhões sofrem com o desemprego de um modelo capitalista neoliberal, em que a África arqueia sob o peso da miséria e da aids, em que a corrida armamentista consome riquezas inomináveis — é ridículo apequenar Deus a questões insignificantes.



Não quero um deus manhoso e instável

Eu não quero um deus que precise ser agradado o tempo inteiro. Não quero uma religião neurotizante, que me force a andar constantemente preocupado em acertar com perfeição absoluta para não ser castigado. Não quero que meu culto se transforme naquilo que foram os rituais pagãos: meras cerimônias que visavam aplacar a ira dos seus deuses. Não quero um deus restritivo e punitivo. Acredito em um Deus libertador. Concordo com o rabino Harold Kushner: “Acredito que a mensagem fundamental da religião não é a de que somos pecadores porque não somos perfeitos, mas a de que o desafio de ser humano é tão complexo, que Deus não perde tempo esperando de nós a perfeição. A religião vem para purificar-nos de nosso sentimento de desvalia e para assegurar-nos de que, quando tentamos ser bons, e não conseguimos ser tão bons quanto desejávamos ser, não perdemos o amor de Deus... A religião é a voz que diz: eu vou guiá-lo através desse campo minado das difíceis escolhas morais, compartilhando com você a percepção e a experiência das grandes almas do passado, e vou lhe oferecer o conforto e o perdão quando você estiver perturbado pelas escolhas dolorosas que fez”.1

Eu quero menos deus, mas quero mais Deus para que sua mensagem continue a inspirar novos Bachs e novos Hendels a comporem hinos de pura beleza. Quero menos deus e mais Deus para que outros Martin Luther Kings e outros Mandelas se levantem como profetas da justiça. Quero menos deus e mais Deus para que outros Simontons, Vingrens e Madres Teresas se aventurem a singrar mares e culturas com o ideal de Cristo. Quero menos deus e mais Deus para que muitas igrejas sejam plantadas nos morros violentos do Rio de Janeiro, para que se multipliquem os evangelistas que enfrentam as penitenciárias imundas do Brasil, saqueando vidas do inferno e povoando o céu. Quero menos deus e mais Deus, para que continuemos acreditando no amanhã.

Soli Deo Gloria.

Nota

1. KUSHNER, Harold. “O quanto é preciso ser bom?” Rio de Janeiro: Exodus Editora, 1997. p. 7 e 26.


Ricardo Gondim é pastor da Assembléia de Deus Betesta no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, Orgulho de Ser Evangélico — por que continuar na igreja e Artesãos de Uma Nova História.
www.ricardogondim.com.br



EXTRAÍDO DE: www.ultimato.com.br

0 comentários: